sábado, 17 de setembro de 2011

Dissimulando

Todos os dias ela acordava muito calada. No vaso sanitário pensava no significado da vida, no chuveiro pensava em seu dia e afazeres, escovava os dentes pensando que seria triste perde-los um dia. Nessa hora seu gato sempre a escalava, da pia para seu ombro direito, para se ver no espelho – era um gato vaidoso talvez, alguém ali deveria ser, afinal. Escovava então os dentes, descia o gato antes de ligar o secador, hora em que ele saía janela da cozinha afora para a primeira voltinha do dia – um gato muito ocupado talvez.

Antes de se vestir era sempre uma marinada básica de 15 minutos na cama. Como conceber se vestir antes do corpo realmente sair do estado de banho? Um corpo seco não depende da qualidade da toalha, mas do tempo de respiração da pele após o banho. Então era esperar o corpo secar, o desodorante secar, o perfume secar, o creme secar, o ainda cansaço das eternas noites mal dormidas secar, se conformar que era assalariada e batia ponto, que estava atrasada, se vestir correndo, deixar os acessórios esquecidos sei lá onde, e sair. Ufa! Mas sentia pena de quem se vestia no banheiro, pessoas úmidas, vaginas úmidas, cheiro de guardado, sexo ruim. Uma pena! Preferia muito mais quem esquecia de por os brincos e desistia das pulseiras. Essas sim dariam um ótimo sexo.

Talvez por isso o caminho todo ao trabalho pensava em sexo. Quantos naquele trânsito tiveram uma boa noite de sexo? Poucos, outra pena. Ela ria da sempre conclusão besta de que pessoas que fazem sexo gostoso não ficavam paradas no trânsito. Um raciocínio ilógico, dos ilógicos que sempre tem. Aí pensava na chefe lésbica que não a pegava. Tinha essa mania: chefes, professoras, qualquer uma que exercesse bem autoridade ou superior inteligência, ou os dois, a envolvia muito facilmente.

Mas mesmo que tudo pareça muito óbvio e escancarado, não era. Como saber o que ela realmente pensava? Chegava ao trabalho no horário, guardava sua bolsa, capacete, uma arrumada de cabelo no espelho do vestiário, saía. Café da manhã com as colegas, amenidades, filhos, cachorros. Então trabalho, algumas genialidades, alguns deslizes, algumas invejinhas alheias, vergonhas alheias, a certeza de um certo distanciamento.

Era esse distanciamento que matava. Uma frieza, um polimento, e ninguém sabia o que ela realmente pensava. Nada abalava: provocações, discussões, nem mesmo grandes elogios. Era mesmo uma figura muito intimidante, que gerava sempre um trato formal e grandes repercussões inamistosas. Uma dissimulada! Dissimulava seus sorrisos, suas dores, suas opiniões, dissimulava a raiva na forma de indiferença natural. Até sua loucura era dissimulada em genialidade, como seu tédio dissimulou-se muitas vezes de orgasmos. Uma personagem tão bem criada que mesmo ao se indagar onde ali estava ela, a ela não se saberia dizer. Perdida, sim, mas seguia a vida até que reaparecesse.

Voltava pra casa. As vezes o telefone tocava, saía ou ficava, era um sexo bobo, mas urgente, e era só disso que precisava. No fundo a amava muito, mas nunca admitiria. As vezes era só silêncio, palavras lidas, barulho, palavras cantadas, um certo vazio de outro dia cheio. Mas não reclamava. Vazios de dias cheios a confortavam. Era um vazio cheio de significado, como sua própria alma. E era só com isso que se identificava. Dormia, enfim, sorrindo. Um outro sono mal dormido, mas justo. Ali, enfim, tudo era perfeito!